Mulheres e mães

Mulheres e mães

A futura ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, declarou que mulher nasce para ser mãe. As mulheres seriam mais bem servidas sem ministério algum. Para o que serve uma ideia dessas?

No começo dos anos 1970, eu terminava uma segunda graduação, em Genebra, Suíça. Com alguns colegas, à noite, oferecia um ensino gratuito a imigrantes italianos, para que pudessem ser aprovados no exame final do ensino fundamental, sem o qual era impossível se candidatar a empregos públicos na Itália.

O Centro Social Protestante de Genebra oferecia locais, material e, ao fim de cada ano, um ônibus para levarmos os alunos até a cidade italiana mais próxima, onde fariam o teste.

Os alunos eram imigrantes sazonais. Ou seja, eles podiam trabalhar na Suíça por 11 meses; depois disso, eram obrigados a voltar à Itália e lá permanecer um mês, antes de regressarem e retomarem o trabalho. Era um jeito de contornar as leis suíças, segundo as quais, se permanecessem um ano, eles ganhariam o direito de chamar mulher e filhos, a quem o Estado deveria garantir saúde e educação.

Meus alunos, sazonais há anos, eram todos pais de famílias numerosas (entre 6 e 11 filhos). A cada ano, eles voltavam para casa e, durante um mês, faziam o que era preciso para engravidar a mulher. Nove meses mais tarde, na Suíça, recebiam (pelo correio) a primeira foto do recém-nascido.

Eles não gostavam que a mulher não engravidasse. Eu não entendia bem o porquê, considerando que eles se queixavam do número crescente de bocas que precisavam sustentar. Quando eu questionava a necessidade da gravidez anual, eles respondiam: “Professo’… una donna sola… con tutti i picciotti…” —professor, uma mulher sozinha, com todos os garotos que têm por aí, se ela não estiver grávida”¦

Em regra, eu escutava essas explicações com a expressão cúmplice que era esperada, tipo “entendo, claro”. Até que uma noite não me aguentei e argumentei que uma mulher grávida, contrariamente ao que eles pareciam pensar, tem desejos sexuais intensos e, no próprio último mês, pode literalmente subir pelas paredes. Ou seja, certo, estando grávida, ela não engravidaria de outro. Mas… Transar, por que não?

Quase todos sabiam por experiência (mas tinham “esquecido”) que a gravidez não apaga o desejo sexual da mulher, longe disso. Agora, com minha observação, eles se lembravam disso e do fato de que, na verdade, eram eles que evitavam transar com a mulher grávida.

Apesar disso tudo, acreditavam que, na ausência deles, a gravidez fosse o grande baluarte contra “os cornos”, contra a traição.

Nunca percebi de maneira tão clara a oposição que nossa cultura tenta (e consegue) manter entre mulher e mãe. O fato que as mulheres deles engravidassem parecia excluí-las do conjunto das mulheres: enquanto fossem mães, não seriam mulheres.

De onde e como se sustenta essa oposição?

Muito sinteticamente, só para começar a pensar. O Antigo Testamento (Gênesis, com a história de Adão e Eva, em particular) serve perfeitamente à misoginia dos padres da Igreja dos séculos 3º e 4º: eles gostariam de amar só a Deus, mas, quando passa um rabo de saia, se distraem. A culpa é da mulher, eterna Eva tentadora, não é? Como diz Tertuliano: ela é a porta por onde o Diabo entra.

Portanto, para os homens servirem a Deus, é preciso que controlem seu desejo, cuja fonte é a tentação que viria do desejo das mulheres. Pois bem, a Virgem Maria foi a grande invenção cristã para controlar o desejo sexual feminino.

Com Maria, ser mãe se tornava possível (e glorioso) sendo virgem antes, durante e depois do parto —semper virgo.

Você é mulher? Seja mãe como a Virgem Maria.

Você é homem? Pense em Maria, a santa mãe, quando se sentir tentado por uma mulher. Eventualmente, você vai ter uma vida sexual inibida e miserável com a mãe de seus filhos (pois pensar que ela é mãe como Maria pode ser brochante). Mas não se preocupe, esse é o preço da sua tranquilidade e da solidez da família, não é?

Justamente, não é. Esse é apenas o preço da misoginia. Na cultura ocidental cristã, a idealização da figura materna está sempre a serviço da misoginia: é um jeito de silenciar o desejo feminino, “protegendo” os homens das “tentações”.

Não é uma razão para não ter filhos, mas, sugestão aos homens: tentem não se casar com a Virgem Maria. E evitem pensar em Maria quando sua mulher engravidar.

Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

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